quarta-feira, 11 de março de 2009



Bernardino Machado regressou do 2º exílio, vindo de França com outros emigrados políticos- Jaime Cortesão, sua mulher e filha Maria Judite, César de Almeida e sua mulher, família Pope. Acompanhava-o também a filha Elzira, que o secretariava desde que substituiu a irmã Jerónima, quando do casamento com Aquilino Ribeiro.

Desembarcaram na estação do Rossio na noite de 28 de Junho de 1940, tendo meu Avô ido ficar a casa de seu filho Bernardino, que morava na Lapa..

Pouco depois da sua chegada a Lisboa presenciei a cena da intimação pela polícia política de Salazar, para que Bernardino Machado abandonasse a cidade. Que grande lição de civismo a que assisti ! Todas as qualidades e virtudes que sabia pertencerem à sua personalidade – dignidade, bondade, cordialidade, inteligência e nobreza de carácter – marcaram a forma como recebeu o agente da PIDE, que levava uma declaração para meu Avô assinar, comprometendo-se a abandonar Lisboa no prazo de 24 horas e ficar com residência fixa em Paredes de Coura. O “pide” ficou surpreendido, sem perceber a forma como era tratado; meu Avô pediu-lhe que se sentasse, perguntou-lhe se tinha filhos, donde era natural, explicando-lhe depois porque não podia assinar tal documento, pois tinha enviado na véspera, dia 28 de Junho, ao entrar na fronteira, um telegrama ao Presidente do Conselho, cujo texto lhe foi lido:

- “Os meus compatriotas, quase todos militares, que acabam de chegar a Portugal, entenderam que, na eventualidade de prestarem os seus serviços em defesa da nação, não deviam conservar-se em França donde mais tarde poderiam ser impedidos de partir. E, devendo este grave momento ser de união para todos os portugueses, vim também para, por minha parte, dar o exemplo.”

O “pide” retirou-se desnorteado. Mas passado algum tempo regressou, insistindo na assinatura do documento que voltou a entregar a Bernardino Machado. Meu Avô pediu a uma das netas presente para escrever à máquina a seguinte declaração:

- “O Governo pode convidar-me a sair de Lisboa, o que me prontifico a fazer no prazo de 24 horas, pelo receio que porventura tenha de que a minha presença, contra minha vontade, seja causa de qualquer agitação. Mas o que não pode é condenar-me à detenção, seja onde for, porquanto não faltei nem sou capaz de faltar à declaração que ao Chefe do Governo fiz de que vim para, por minha parte, dar o exemplo da união entre todos os portugueses.”

Foi esta a declaração que o “pide” levou. Nunca meu Avô tomou o compromisso de aceitar o regime de residência fixa, como é referido em muitas publicações históricas. Aliás decidiu em 1942 ir viver para os arredores do Porto, para a Senhora da Hora, tendo falecido no Porto em 1944. Em carta para meu Pai, datada de 19 de março de 1944, refere: - “Eu tinha preparado tudo para ir do Porto para o Estoril. Mas à última hora coincidiram dois factos: o adiamento da vinda do Covões que se tinha oferecido para me levar no seu automóvel, e conjuntamente com o mau tempo o receio que sobreveio ao meu médico que eu não tivesse todas as forças para fazer a viagem. Para aqui voltamos todos e continuaremos até o nosso médico autorizar a partida.”

Na manhã seguinte à sua chegada Bernardino Machado foi visitar a filha Joaquina que se encontrava internada no Hospital da Estrela, onde tinha sido operada pelo Dr. Sacadura Bote. Fez a viagem a pé, acompanhado por seu neto António e o amigo Doutor Neves Real, sendo reconhecido por todos os transeuntes, que lhe prestavam, com grande alegria, provas de muito afecto e respeito.

Numa carta para um neto, Bernardino Machado recorda a sua vinda do exílio: - “...tu, António, companheiro querido dessa noite histórica em que 14 anos de policia inquisitorial e tribunais de excepção se assustaram, julgando-se arriscados ao seu transe final, se me não retirasse depressa de Lisboa...”

O professor de matemática, Doutor Luís Neves Real, assistente do saudoso Professor Doutor Rui Luís Gomes, escreveu em Setembro de 1952 um texto que intitulou - Uma lição dos homens da “Propaganda” - para as páginas do jornal “República”, quando da homenagem a António Luís Gomes, do qual transcrevemos uma parte referente a Bernardino Machado.

“Só, em relação ao que evolucionou o mundo de então para cá, é que se pode compreender tudo o que para mim significou ver, em 1940, caminhar pelas ruas de Lisboa a figura nonagenária de Bernardino Machado. Eu tivera já a honra de conhecer pessoalmente Bernardino Machado durante o seu exílio de La Guardia. Fora para essa simples visita de saudação, levando, lado a lado com recordação de elegância, brilho e combatividade do seu espírito, que admirava nos seus escritos, a memória da sua figura e do seu rosto, colhida em múltiplas revistas e jornais dos tempos democráticos da minha infância. Mas a primeira impressão diante de Bernardino Machado foi a perplexidade: ele era totalmente diferente. Vinha a diferença dum olhar extraordinário, de aguda inteligência e admirável suavidade, que se sobrepunha a todas as linhas fisionómicas e desmentia, como descoloridas e superficiais, todas as falsas imagens que dele conhecera. Enquanto o ouvia discorrer sobre acontecimentos do passado, que a sua espantosa memória pormenorizadamente retinha, eu reencontrava, com indefinível encanto, aquela afectividade, que molhara de lágrimas, as saudosas e pungentes páginas que dedicou num livro à recordação da sua filha Maria.

Hoje, irresistivelmente, me surgem as palavras “luz calor”, do título do velho livro setecentista, para exprimir a impressão, com que, nesse fim de tarde dum Maio desabrido, deixei Bernardino Machado rodeado do carinho dos seus.
Foi esta mesma emoção que ampliada voltei a sentir quando em 1940 em Lisboa pude seguir Bernardino Machado, dirigindo-se a pé, desde o Hospital da Estrela até à Rua do Actor Taborda.

Era esta a primeira oportunidade que se lhe oferecia, após catorze anos de exílio, de caminhar livremente pelo meio do Povo dessa cidade, que diversas vezes o elegera como seu representante e de onde, em momentos decisivos para a vida do País e do Regime, ele fora o interprete da vontade da maioria da Nação e do pensamento democrático português. Cada rua, cada lugar, era motivo para a evocação de gente e acontecimentos, sempre cerzidos pela linha firme dum pensamento coerente. Como era lento o seu caminhar começaram a surgir pessoas, que, ao cruzarem com ele o reconheciam, surpreendidas, e voltavam depois, sobre os seus passos, para o saudarem com impressionante respeito. A todos respondia com o tão celebrado cumprimento, que conheci e compreendi, então, no seu exacto significado: um gesto simples, mas caloroso, em que se fundiam um profundo sentimento de fraternidade e o reconhecimento da dignidade inerente a cada ser humano. Dessas singelas e sentidas homenagens de desconhecidos, nenhuma porém foi mais tocante do que a duma mulher – modestíssima mulher – que depois de o reconhecer a ele se dirigiu, visivelmente emocionada, para lhe dizer que possuía, como preciosidade que seu marido sempre venerara e ela religiosamente conservava, um antigo retracto de Bernardino Machado”.

Quando do seu regresso a Portugal em 1940 convivi com meu Avô durante longos períodos. Logo no verão de 40 passei as férias em Mantelães. Muitas das manhãs substituia minha tia Elzira, apoiando o Avô no tratamento da correspondência e seus outros escritos.

No mês de Abril passado, durante as comemorações do dia 9 realizadas em Famalicão, dei conhecimento e entreguei no Museu Bernardino Machado dois documentos, ainda inéditos - um Ofício da Liga dos Combatentes da Grande Guerra, recebido em Paredes de Coura no final de Julho de 1940 e a resposta de Bernardino Machado, que exprime bem o seu pensamento e vem dar ênfase ao texto do Professor Doutor Norberto Cunha, no Prefácio do livro "Bernardino Machado e a 1ª Grande Guerra". Na minha intervenção durante as Cerimónias realizadas em Famalicão, recordei a satisfação que vi em meu Avô, quando em 1940 lhe foi entregue o distintivo de Sócio de Honra da Liga, a que tinha direito como Membro do Conselho Supremo da Liga.

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