quarta-feira, 30 de outubro de 2013











XIV
A REVOLTA ACADÉMICA DE 1907

«Os reaccionários acusam-me de ser o promotor de todas as revoltas da mocidade. Serei. Mas, professor, falo aos estudantes como falo aos meus filhos. Na Universidade eu digo-lhes sempre: ela deve ser para nós como uma segunda pátria; combatamo-nos dentro dela, mas sem jamais a ferirmos, e que as nossas lutas internas sejam exclusivamente de ideias, porque só essas são dignas de nós. Disse-o publicamente a primeira vez que me coube proferir a oração chamada de sapiência, após um ano lectivo de dissensões, em Outubro de 1885, já lá vão quase 22 anos. E tenho-o repetido constantemente, ainda nos mais recentes dias. Porque serei então revolucionário com os rapazes? Ah! É porque, ao mesmo tempo, voltando-me para os professores, eu tenho também proclamado sempre: o estudante é um homem e um cidadão livre. E, se quero que ele cumpra todos os seus deveres, quero, igualmente, que lhe reconheçam todos os seus direitos.»

«Há quantos anos a mocidade académica faz a campanha das suas liberdades? Não houve momento solene em que as não reclamasse, frementemente. E, há quantos anos, de dentro do próprio magistério saem vozes, pedindo-as, solicitando-as, instando por elas? Porque a verdade é esta: libertar o aluno é libertar e dignificar também o professor; quanto mais livre o ensino, mais o professor é um eleito do aluno que o segue. A desconfiança do despotismo do professor, por parte do aluno, e a desconfiança da rebelião do aluno, por parte do professor, este antagonismo que os põe em conflito, fazendo com que o aluno vá até à insurreição violenta e o professor apele para as repressões excessivas, provém do distanciamento em que vivem um do outro, não se conhecendo bem, não podendo portanto deixar de frequentemente se ferir com injustiças mútuas. E porquê? Porque não querem viver intimamente entre si? Não! Porque não podem, porque o regime das aulas não lhes deixa essa liberdade. E a prova está em que estes conflitos se dão principalmente na Faculdade de Direito, onde ao estudo falta a observação e a prática, porque a Faculdade não tem sequer, como devia ter, uma banca de consulta para pobres, e onde o número de alunos por professor é tão exagerado que se torna quase impossível a livre troca de ideias entre uns e outros, de modo que o ensino por causa do regime tem de ser forçosamente automático, de catequese. Por isso é nela maior que em nenhuma das outras Faculdades o distanciamento entre mestres e discípulos.»

“A Disciplina”, in Pela Republica: 1906-1908, Lisboa, Editor-Proprietario Bernardino Machado, 1908.

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«Referindo-se à questão da Universidade de Coimbra, conta que o Ministro das Obras Públicas [Malheiro Reimão], na resposta dada na Câmara dos Deputados aos estudantes, lhes disse que voltassem à normalidade, porque o Governo tomaria desde então em conta as suas reclamações. É o mesmo que diz ao povo, e decreta leis como a da imprensa. Pois a ordem tem que inverter-se! Satisfaçam as nossas reivindicações e depois entraremos na normalidade.
Se em Coimbra houve excessos, actos condenáveis, esses atentados devem ser cometidos ao tribunal comum e não a um tribunal privilegiado.
O movimento académico foi semelhante ao da sociedade portuguesa: é o mesmo incêndio das almas pela liberdade. Todos têm que lhe dar o seu apoio. Ele próprio, como republicano e como professor, diz aos estudantes que sejam dignos de si, e no dia em que a algum deles for imposta qualquer condenação, mantenham a sua solidariedade. Se for expulso algum académico, declara-o ali, enquanto as portas da Universidade se não abrirem em seu desagravo, essas portas estarão igualmente fechadas para ele.
Devemos estar com os moços, sobretudo quando eles se afirmam no sacrifício pela liberdade.»

“Inauguração do Centro Eleitoral de Belém. A Questão Académica”, in Pela Republica: 1906-1908 – I, Lisboa, Editor-Proprietario, Bernardino Machado, 1908.

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«É preciso lembrar o princípio desta questão, diz-nos o Dr. Bernardino Machado. Sete estudantes foram vítimas duma sentença injusta ditada pelo mais descaroável despotismo. No seu julgamento preteriram-se todos os direitos de defesa, não se lhes articulando sequer expressamente, para eles poderem justificar-se, os factos da acusação. Isto numa Universidade onde há uma Faculdade de direito, isto num processo judicial organizado por uma Faculdade de Direito! E assim se condenaram, como chefes de desacatos contra alguns lentes, estudantes que tenho a certeza de que só num momento de exaltação os cometeriam, e que eram inteiramente incapazes de os planear e dirigir. De um deles sei eu que nem estava na Universidade durante os distúrbios. Poderá testemunhá-los um dos próprios lentes que se diz haverem sido desacatados pela academia. Pois o acordam do conselho dos decanos afirma que ele lá esteve, e expulsa-o por dois anos!
Que devia fazer a Academia perante tamanha injustiça? Protestar. Foi o que fez quase unanimemente. Que devia fazer o Governo? Promover a revisão da sentença para a causa ser de novo julgada com todas as garantias de justiça. Confirmar-se-ia ou não o acordam dos decanos, conforme fosse justo. E todos ficavam satisfeitos. Em vez de o fazer, o Governo manteve encarniçadamente a sentença, usando para isso das armas ainda mais defesas, da intimidação, do suborno, da intriga e da calúnia, armas defesas sobretudo contra rapazes, contra o seu ânimo generoso, contra a sua cordialidade, que para todos deve ser sagrada. Nem quando eles façam o mal, os havemos de humilhar; mas, quando eles cumprem nobremente as suas obrigações de camaradagem, abatê-los é um crime.
Porque procedeu com tão aleivosa parcialidade o Governo? Seria ele o incitador da sentença?
O despotismo no governo da escola prepara e assegura o despotismo no Governo da nação. E ambas estas formas do despotismo tem perpetrado entre nós a Monarquia nos últimos tempos; de ambas tem tido por principal executor o actual Presidente do Conselho de Ministros. De 1894 a 1897, o Governo do engrandecimento do poder real centralizou o ensino primário, monopolizou o ensino secundário, e desferiu os seus primeiros golpes na independência do ensino superior […]»

«Cumpre-nos neste lance proclamar bem alto que o decreto com que o Governo mandou encerrar [a] matrícula nos estabelecimentos de ensino superior, é, como todos os seus decretos ditatoriais, ilegal, e, como tal irrito e nulo. Não obriga a ninguém, os professores não o devem executar; nem confere direitos a ninguém, os estudantes devem desprezá-lo. Vai nisso a hombridade de todos.»

“A Questão Académica”, in Pela Republica: 1906-1908 – I, Lisboa, Editor-Proprietario, Bernardino Machado, 1908; tb.: in A Universidade de Coimbra, 2.ª ed., Lisboa, Editor-Proprietario, Bernardino Machado, 1908. [Entrevista com Mayer Garção, Mundo, 6 de Junho de 1907.]

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«Estou sempre no meu posto, em defesa da Universidade, e tanto dos seus discípulos como dos seus mestres.»

«Ainda agora, ao rebentar deste conflito, àqueles com quem pude falar, eu aconselhei a não deixarem nenhum dos seus companheiros desacatar nem a Universidade nem os seus mestres.»

«Por isso, se, como disse, tenho a obrigação, tenho também o direito e talvez a autoridade para intervir pelos estudantes junto dos professores e dos poderes públicos, quando eles são injustamente tratados.
Fi-lo, estando o processo do actual conflito universitário pendente do conselho de decanos, logo que os ofícios da reitoria a alguns estudantes me inspiraram receio de desmedidos rigores. Protestei contra a confusão da solidariedade de todos no movimento de reforma com a cumplicidade colectiva nos desmandos individuais dum ou de outro, pondo mesmo na balança o peso, embora diminuto, dos meus serviços. Infelizmente nada consegui: o conselho de decanos levou ao cabo o seu deplorável propósito, condenando sete estudantes expulsão como cabeças de motim.
Sem desnaturar a questão, eu tenho, portanto, agora de reclamar do Governo que a resolva.»

«No caso presente, os desacatos, se os houve, foram exclusivamente individuais; e não só a Academia não foi solidária neles, mas repudiou-os formalmente em assembleia- geral, de modo que bem se pode dizer que os seus autores ficaram logo punidos. Apesar disso, inventaram-se instigadores desses excessos para se expulsarem da Universidade por um e dois anos. Não pode ser!
Não quero fazer desta questão uma questão política, muito menos no sentido irritante da palavra. O Governo, proclamando que não se derrogará a sentença do conselho de decanos, é que a está fazendo, porque torna necessária para a solução dela a sua queda.
Não teime! Seja lógico consigo. Há pouco ainda aconselhou ao poder moderador a comutação da pena de expulsão dum aluno que o conselho de decanos condenara também por agravos aos seus lentes, em oito dias de reclusão na cadeia académica. Mais obrigado está moralmente agora a submeter o processo à revisão do Conselho Superior de Instrução Pública; e, se não houver meio de anular a sentença, recomende igual comutação de pena.»

«Senão, à violência legal do poder responda a Academia com a resistência legal. Não vá ninguém às aulas. É o seu direito. O ensino superior não é, nem pode ser obrigatório.»

«Penso também que, à custa da sua independência e dignidade, nenhum rapaz deve cursar uma aula. Ou ensino liberal do nosso tempo, ou antes nenhum.»

“Carta aos Estudantes”, in A Universidade de Coimbra, 2.ª ed., Lisboa, Editor-Proprietário, Bernardino Machado, 1908.

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OFÍCIO DE EXONERAÇÃO


Ilm.º e Exm.º Sr.

Tenho a honra de apresentar a V. Ex.ª a minha exoneração de lente catedrático da Faculdade de Filosofia da Universidade de Coimbra.
Deus guarde a V. Ex.ª, Il.mo Ex.mo Sr. Reitor da Universidade de Coimbra.


Coimbra, 16 Abril de 1907


Bernardino Luís Machado Guimarães


“Oficio de Exoneração”, in A Universidade de Coimbra, 2.ª ed., Coimbra, Editor-Proprietario, Bernardino Machado, 1908.








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